top of page
Foto do escritorColetivo De Capoeira Angola UFABC

Entrevista com a Letícia Vidor de Souza Reis, convidada da mesa de Capoeira e Gênero. 26/04/2018*

Atualizado: 6 de mai. de 2020

P: Hoje vemos principalmente na Capoeira Angola, uma diferença muito grande no número de lideranças mulheres e homens. Existe algo que explique uma diferente localização das mulheres nos grupos de Capoeira Angola e dos grupos de Capoeira Regional? Como é esta questão na historiografia da capoeira? Quais os registros mais importantes que podem nos ajudar a entender esse processo de apagamento das mulheres, principalmente as mais antigas, após os 40 anos de idade, dentro da história da Capoeira?


R: Em São Paulo, talvez esta diferença de localização de grupos de Capoeira Angola e de Capoeira Regional, se deva ao fato de que a entrada da Regional foi bastante anterior (a partir de meados de 1960), do que a da Angola (a partir do início da década de 1980). Aos poucos, vão surgindo, tanto na Capoeira Angola como na Capoeira Regional, mestras, contramestras e mesmo grupos de capoeira organizados e presididos por mulheres capoeiras. Por exemplo, o Grupo Nzinga de Capoeira Angola, fundado em 1995 e presidido pela Mestra Janja.

Há hoje várias mulheres capoeiras, mas não necessariamente jogadoras de capoeira, que publicaram artigos acadêmicos, concluíram dissertações de mestrado e tese de doutorado, além da publicação de livros, todos relacionados à capoeira.

O Coletivo Movimento Mulher-Capoeira, do qual faço parte, foi criado em Piracicaba no início de 2018, formado por mulheres de diversas escolas de capoeira de Angola e Regional. Por meio da partilha de conhecimentos e vivências, busca-se fortalecer a representatividade do feminino na capoeira e possibilitar o empoderamento da mulher capoeira.

Neste Coletivo, a ideia não é, de modo algum, excluir os homens capoeiras do debate sobre a identidade feminina na capoeira. Ao contrário, a ideia é incluí-los para conhecermos seu ponto de vista, a fim de que possamos debater como combater o machismo na capoeira.


P: Ainda dentro deste campo simbólico, entendendo o jogo da Capoeira como representação da história do Negro no Brasil, no seu entendimento, qual o papel da mulher dentro da capoeira ao longo da história?


Conforme muda o paradigma da questão étnica, mudam e se atualiza as representações da capoeira, independente do gênero. Considerado em fins do século XIX como principal entrave ao progresso nacional, em virtude de sua “inferioridade atávica”, o negro começará a ser enaltecido como fator de originalidade nacional, a partir da década de 1930.

Em relação à mulher, da mesma forma, de acordo com a mudança do modelo teórico do que é ser mulher, muda e se ressignificam as representações sobre a mulher capoeira.

Quando, na década de 1960, se começou a falar em gênero, o termo era empregado para se referir ao papel social e cultural que se dispunha sobre o sexo. O sexo era ainda tomado como natural, ou seja, era visto como um destino que acabaria por fundar o gênero. Porém, como já dizia Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Portanto, sexualidade e sexo são, antes de qualquer coisa, construções históricas.

Mais recentemente, a filósofa norte-americana Judith Butler, deu ênfase à necessidade de desnaturalização, como forma de desmistificação do sexo e do gênero. Segundo ela, é preciso questionar o patriarcado, desnaturalizar a violência sobre nossos corpos e exigir o reconhecimento de nosso trabalho e de todas as nossas contribuições à economia e ao conjunto da sociedade.

Como sabemos, o machismo é estrutural na sociedade brasileira. A capoeira, historicamente, esteve vinculada ao universo masculino no interior de uma sociedade patriarcal. No entanto, a redemocratização do país, a partir de meados de 1980, possibilita o reaparecimento dos movimentos sociais, inclusive os feministas e também ressurgem as associações e coletivos feministas. A conquista da ampliação do espaço da mulher na capoeira insere-se na luta maior das mulheres trabalhadoras e pelo empoderamento feminino.

Como nas demais manifestações culturais afro-brasileiras, a oralidade é a base da tradição e da transmissão de saberes. No caso da capoeira, as cantigas são um dos mais importantes registros da memória coletiva.

Nas cantigas tradicionais de capoeira estão presentes várias representações da mulher: infiel, ciumenta, mãe e santa, entre outras. Há Há uma cantiga que diz: Ela tem dente de ouro/ Fui eu que mandei botar/ Vou rogar nela uma praga/ Pra esse dente se quebrar/ Ela de mim não se lembra/ Nem dela vou me lembrar. (domínio público) Porém, para ser essa mulher “traíra”, é preciso ser inteligente e dissimulada.

Contudo, com a retomada do feminismo e de seus valores, como citado antes, novas cantigas aparecem, enaltecendo as mulheres capoeiras, como esta: Menina bonita/ quem foi que falou?/ Que o meu coração/ Vive sem seu amor/ Menina, menina, menina/ Menina, menina, menina/ Ô menina! (Mestre Anande das Areias).


P) Como você vislumbra a Capoeira na atualidade e no futuro, politicamente? Existe alguma esperança e que, em um contexto de retirada de direitos e de ataques aos setores mais vulneráveis da sociedade, como negros, indígenas, pobres, mulheres e LBGT´s, a capoeira ainda tenha uma função pedagógica de resistência, ou ela perdeu esta essência?


Penso que, apesar dos desmandos e da predominância de valores conservadores na sociedade brasileira atual, a capoeira, surgida durante a escravidão é uma luta que permite ao fraco se defender do forte, uma vez que não é a força física, mas sim a malícia que importa. Como ensina Mestre Pastinha: “Capoeira é mesmo muito disfarçado. Contra a força, só isso mesmo!”.

A ginga, movimento corporal basilar da capoeira, permite o enfrentamento indireto e é a grande responsável por isso, já que os jogadores estão sempre preenchendo o espaço vazio deixado pelo outro.

Portanto, se tomarmos a roda de capoeira como uma metáfora do espaço social, podemos dizer que há uma negociação constante pela ampliação de um lugar social na sociedade. E isso fica bem explícito nesta cantiga de capoeira: "Ou sim, sim, sim! Ou não, não, não!" (anônimo).



*Letícia Vidor de Souza Reis é Bacharel em História e Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora da rede estadual em Piracicaba (SP) no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

28 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page