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  • Foto do escritorColetivo De Capoeira Angola UFABC

Entrevista com Raquel Dantas

Atualizado: 6 de mai. de 2020


Entrevista concedida no dia 26 de abril de 2019, durante o Ciclo de debates - Capoeira e gênero, Feminismo em Jogo - A práxis da libertação - na Universidade Federal do ABC.


1. Quais os principais obstáculos e dificuldades que grupos de capoeira liderados por mestras mulheres que se pautam por uma filosofia feminista enfrentam na relação com os grupos “tradicionais” liderados por homens? Como contornar o sexismo?



[Raquel] Primeiramente eu gostaria de me situar como discípula do Nzinga há 9 anos, um grupo feminista e antirracista coordenado por duas mulheres – Mestra Janja e Mestra Paulinha – e um homem – Mestre Poloca. Digo isso porque as minhas respostas para estas três perguntas estão marcadas pelo meu lugar de aprendiz de capoeira no interior desse grupo e como pesquisadora do feminismo angoleiro na Universidade. Ao me iniciar na prática da Capoeira Angola, em São Paulo, eu me entendi como mulher, branca e nordestina. Principalmente estes três marcadores, somados à identidade de angoleira e pesquisadora, compõem quem sou hoje e norteia todas as escolhas da minha vida e aprendizados sobre estes temas que atravessam as questões de gênero, raça e a capoeiragem.

Queria fazer essa introdução rápida primeiro. Olha, eu acredito que o debate da “tradição” no interior da capoeira está causando muitas tensões em vários grupos sobre a reformulação de várias práticas. As mulheres não estão mais aceitando as desigualdades de gênero historicamente presentes na capoeira e estão reivindicando relações mais saudáveis, mais horizontais, que lhes permitam desenvolver-se tanto quanto os homens. As mulheres estão percebendo que elas podem ocupar lugares de protagonismo nos grupos de capoeira, que elas podem cantar uma ladainha, que elas podem conduzir uma roda segurando o gunga, tocar atabaque. Sim, nós podemos! E isso tem gerado incômodos em vários espaços. Isso tem gerado mudanças nas posturas das mulheres e na dinâmica das rodas, dos treinos e da própria construção dos aprendizados e dos ensinamentos da capoeiragem. Por exemplo, alguns versos de músicas que colocavam as mulheres submissas aos homens, ou que faziam apologia a violência contra as mulheres estão sendo eliminados por estes grupos ou mesmo substituído por outros versos. Esta nova sociabilidade impressa na Capoeira Angola por estes grupos liderados por mulheres estão mexendo com o que muitos acreditam que é a “tradição”. Mas aí eu evoco a fala da minha Mestra. Não existe tradição estática, ela é dinâmica e se atualiza com o tempo. Não podemos reproduzir opressões dentro de uma prática afro-diaspórica libertária blindados pelo discurso da tradição. Gosto da analogia do Antônio Simas, historiador carioca. Ele diz que a tradição é uma grande corrente e nós, ao escolhermos perpetuar as práticas tradicionais, vamos acrescentando um novo elo da corrente de acordo com o nosso tempo. Assim vejo. Este é o principal embate que visualizo nesse processo atual dos grupos liderados pelas mulheres.

Temos que entender que o processo de luta e de conquista de direitos passa por reformulações dos espaços, das práticas, das relações e também da tradição. E isso não significa perda nenhuma, mas um ganho imensurável, pois estamos fissurando as bases do patriarcado e caminhando em direção ao desmonte de opressões.

E sobre como combater o sexismo.... Ah, o primeiro desafio e enfrentamento ao machismo é permanecer na capoeira. A presença e a permanência das mulheres na capoeira já se configura um grande ato de coragem e resistência. Já estamos promovendo mudanças no sexismo quando decidimos e conseguimos permanecer. E, para além disso, com o diálogo, com a paciência, com os enfrentamentos, ocupando os espaços, tocando berimbau, questionando práticas, fazendo tudo isso com humildade. Eu digo que a ginga é nossa maior aliada para combater o sexismo, não só na Capoeira Angola, mas na vida.


2. Quais os caminhos possíveis para que a capoeira, em especial a capoeira angola que é indissociável de suas raízes afro-brasileiras, possa ser um instrumento de combate ao racismo e ao sexismo em um momento de retrocesso nas políticas sociais, na perda de direitos e no combate a desigualdade?. Em outras palavras, como a capoeira angola pode ser um mecanismo de resistência ao aparato ideológico dos governos autoritários?


[Raquel] Ah, pra mim é o espaço possível para não esmorecer. A Capoeira Angola é quilombo. Aquilombar-se é preciso. Gosto dessa frase. A capoeira aciona o sentido de comunidade, de ancestralidade, de reunir-se em torno de ideais. É o nosso reduto de combate as opressões, de crença num mundo melhor. Em tempos nada favoráveis da macropolítica, fortalecer-se internamente e focar as ações e estratégias valem muito, se não morreremos nas mãos do Estado, nas mãos dos fascistas, assim como Moa, Marielle, Ágata. Vejo o momento como um passo pra dentro, cuidar-se , para depois, caminhar para fora, em marcha e em muitos! Nós somos muitas e muitos. Agora é tempo de micropolíticas, alianças, vínculos, afetos e cuidados. A luta antisexista e antirracista emplacada pela Capoeira Angola, ou melhor, por alguns grupos, não vai se perder. Pelo contrário, ela precisa amadurecer e se firmar, para assim, quando brechas surgirem, avançarmos nas conquistas de políticas públicas e transformação dos imaginários sociais. E nesse processo de olhar para dentro que eu entendi meu lugar de mulher branca na luta antirracista. Eu fui acolhida num espaço de cultura negra que sofre atualmente com o esvaziamento do povo negro. E o que eu posso fazer para mudar isso? Qual o meu papel nesse sistema? Esta é uma pergunta que toda angoleira branca, todo angoleiro branco deve se fazer e conversar com seus pares, com seus grupos, com seus mestres, mestras. Estas reflexões precisam gerar incômodos e , consequentemente, ações práticas da luta antirracista. Acredito que isto é micropolítica.


3. A capoeira está inserida na cosmovisão africana como uma luta diaspórica, de resistência negra. O termo feminismo seria uma palavra de certa forma eurocentrada. Não haveria um outro termo a ser usado? (não desmerecendo a luta das mulheres na sociedade e muito menos dentro da capoeira onde tem o papel muito importante na luta contra o machismo)


[Raquel] Eu entendo que as desigualdades de gênero sempre existiram na história, em várias civilizações e sociedades de várias épocas. Estas desigualdades apareceram ao longo dos séculos de diferentes formas e intensidades. Rita Segato fala de um patriarcado de menor intensidade, referindo-se às desigualdades existentes antes do processo de colonização. Esta leitura que fazemos hoje não padroniza a forma como cada sociedade chamava as relações desiguais que viviam em cada época. A partir de uma leitura ocidentalizada, hoje entendemos o patriarcado dentro de uma compreensão estrutural, que veio se modificando ao longo dos anos em cada sociedade e, pós-colonização, intensificou o grau de violência. Outras cosmovisões constroem estas leituras a partir de outras compreensões de mundo. Assim também acredito que tenha acontecido em relação ao processo de luta por igualdade. O que hoje chamamos de feminismo numa compreensão ocidentalizada, também já se praticava em outras sociedades e civilizações, ainda que não existisse esse nome. A organização das mulheres em torno dos seus direitos também é secular e diferentes sociedades já conviviam com essa realidade. A Capoeira Angola está inserida nesse trânsito diaspórico, entre o afrocentrismo e a cultura ocidental. O Brasil foi brutalmente violentado pela colonização e herdou toda a visão eurocêntrica cristã em suas bases de formação entrando em conflito direto e negociando, permanentemente, com a cultura negra afrocêntrica. Esta característica da capoeira, ao meu ver, faz com que ela transite também entre as compreensões destas duas cosmovisões no seu próprio processo de existência e reinvenção da resistência. Trazer o conceito e a palavra feminismo para dentro da capoeira, que já se nasce como um instrumento de luta, é armá-la com mais uma ferramenta em defesa dos próprios ideias, o combate contra toda forma de opressão. Sei que existem outros movimentos que identificam também a luta das mulheres a partir de outros olhares, como o Mulherismo Africana, mas eu nunca estudei, não sei falar dele. Gosto da Julieta Paredes quando discorre sobre o conceito de Feminismo Comunitário para descrever o movimento das mulheres indígenas bolivianas. Acho que todas estas misturas entre formas de viver e pensar são possibilidades de trocas de conhecimentos entre formulações que agregam e potencializam as transformações. Não podemos cair em essencialismos conceituais. A semântica, a palavra e os conceitos também estão em disputa. Não à toa estou trabalhando com Feminismo Angoleiro no meu Doutorado.

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