“Ainda assim, o mundo resiste. Ele consiste em ser uma negativa da negativa que tentamos lhe impor. Também é destruído pelo que soubemos produzir. O mundo não é mais o mesmo e não é o que pensávamos que fosse.” (Eduardo Oliveira, em “Filosofia da Ancestralidade”)
Ancestralidade tem sido um termo muito evocado na contemporaneidade, principalmente no movimento negro e entre os praticantes de manifestações culturais afro-brasileiras. Esse conceito é reivindicado com o intuito de resgatar as origens e raízes culturais que foram apagadas no processo colonial em que os negros foram arrancados de suas terras natais e escravizados no “novo mundo”. Porém, muitas vezes a sua definição continua incerta ou confusa, e por esse motivo, recorremos aos estudos de mestres e doutores que pudessem nos orientar nesse sentido, começando pelo texto de Mestra Janja e Sara Abreu já discutido aqui neste blog.
Prosseguindo nossos estudos sobre o tema, recorremos dessa vez aos escritos de um dos maiores especialistas no assunto, o professor Eduardo Oliveira, o Duda, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se prontificou a participar de uma discussão conosco para que chegássemos ao entendimento acerca de conteúdos que ainda nos deixavam dúvidas, bem como conduzir o aprofundamento sobre os textos lidos. Os artigos escolhidos para fomentar nosso debate foram “Epistemologia da ancestralidade” e “Filosofia da ancestralidade”.
No artigo “Epistemologia da ancestralidade”, o autor concebe a epistemologia não como teoria do conhecimento, mas como a fonte de produção de signos e significados. Eduardo acredita que existe uma episteme para cada cultura, e que esta é mais ou menos desterritorializada. A cultura é entendida pelo autor como o “jogo de sedução do real”, sendo que o real é compreendido por ele como uma singularidade, algo que não se repete, mas que não está refém da interpretação de um indivíduo ou um grupo de indivíduos e que ao mesmo tempo é construído a partir da observação destes.
Mas afinal, qual é a definição de ancestralidade de Duda? Trazemos aqui um trecho em que o professor conceitua o termo:
“Ancestralidade , como já disse, é uma categoria analítica que se alimenta da experiência de africanos e afrodescendentes para compreender essa experiência múltipla sob um conceito que lhe dá unidade compreensiva, sem reduzir a multiplicidade da experiência a uma verdade, mas, pelo contrário, abre para uma polivalência dos sentidos.”
A partir dessa definição, temos a base para compreender qual a trajetória do autor na concepção da chamada “Filosofia da Ancestralidade”, processo que é narrado em seu artigo homônimo (sobre o qual falaremos mais adiante).
Em nossos encontros sobre os textos do professor Eduardo Oliveira, um outro termo apareceu para discussão: cultura. Um termo tão presente na vida de todos, mas que na verdade soa bem complexo quando nos propomos a refletir sobre ele. O que é, afinal, a cultura? O que é uma prática cultural? A partir da leitura desse primeiro texto e da discussão no Grupo de Estudos, chegamos à ideia de que, tomando a África e o Brasil da Diáspora como nossa referência territorial, todas as práticas que sejam comuns entre esses dois lugares e que levem em consideração o plano de ação articulado ao plano de conceito podem ser consideradas práticas culturais. A cultura será então “o movimento da ancestralidade comum a esses territórios de referência.” Entender essa ideia de cultura nos ajuda, portanto, a entender ainda mais a dinâmica envolvendo a ancestralidade no Brasil da atualidade.
Duda defende, ainda em “Epistemologia da Ancestralidade”, que a cultura da ancestralidade pode ser encontrada em qualquer parte do planeta. Mas apesar disso, no Brasil ela assume um papel diferente: é protagonista da construção histórico-cultural do negro. Aqui, converte-se em um signo da resistência afrodescendente e passa a ser um valor civilizatório de grande importância a partir da ascensão do movimento negro e da tentativa de uma construção nacional na década de 60. Segundo o autor, a ancestralidade “espalha sua dinâmica para qualquer grupo que queira assumir os valores africanos”. Por isso a importância da Ancestralidade.
“Filosofia da Ancestralidade”, assim como “Epistemologia da ancestralidade”, é um artigo que nos faz pensar e repensar muitas coisas. O professor parte da ideia de que a própria Ancestralidade já é, em si, uma filosofia, como defende:
“A ancestralidade, na perspectiva da experiência africana, é uma filosofia que, como todas as outras, produz mundos para muito além de produzir conceitos.”
Duda se propõe a pensar e elaborar uma filosofia afro-brasileira, tendo a cosmovisão africana como epistemologia e a ancestralidade como ontologia, ideia não só encantadora e fascinante como também absolutamente necessária. Ao falarmos em epistemologia, podemos dizer que o racismo foi (e ainda é) a epistemologia dominante nos últimos 500 anos e isso obviamente tem um grande peso que não pode ser ignorado ou relevado. É necessário pensar um filosofar que em seu cerne, em seu devir, rejeite o racismo enquanto epistemologia.
Nesse segundo artigo lido pelo grupo, Eduardo Oliveira pretende colocar em diálogo a filosofia e a pedagogia multirracial e étnica, articulando filosofia latinoamericana e cultura/contato africano e afro-brasileiro como guia para uma nova perspectiva filosófica,
“(...) pois aqui as experiências diaspóricas de África, em contato/conflito com as experiências indígenas e européias ganharam outros contornos e geraram novos problemas”
Temos, portanto, no contexto latinoamericano (e mais especificamente brasileiro), uma singularidade que deve ser incorporada pelo contexto filosófico e é pelo autor apropriada na construção dessa Filosofia da Ancestralidade. Importante lembrar que a ancestralidade a que ele se refere diz respeito muito mais a uma categoria analítica (como já dito anteriormente) do que a parentesco simbólico ou relações consanguíneas.
É necessário trazer a questão da incorporação do nosso contexto para a prática filosófica pois tal movimento ainda não foi feito efetivamente, em nenhum momento da história. A Escravidão, por exemplo, apesar de representar um importante capítulo na história da humanidade e na construção dos Estados modernos, jamais foi um tema abordado pela Ciência ou mesmo pela Filosofia. De acordo com o professor:
“Aponta-se que a própria forma de produzir sobre o racismo foi, de certo modo, racista.”
Tal afirmação nos coloca de frente a uma verdade sobre a qual não costumamos pensar muito: tanto a ciência quanto a filosofia ainda falam no formato do colonizador. Mesmo quando buscamos tratar dos temas que colocam nossas vivências como protagonistas, ainda fazemos isso em uma Academia formatada por aqueles que colonizaram África e Américas. A forma como aprendemos a produzir discursos nos faz ler o mundo, muitas vezes, a partir de perspectivas que não contemplam nossa história, nossa ancestralidade ou nosso lugar. Mas precisamos nos lembrar que:
“(...) o discurso não é o mundo - ele o produz, o mascara, o critica, o destrói, o modifica, mas não se identifica com ele. (...) As regras do universo, então, não são as regras dos cientistas."
Daí vem então a necessidade de formularmos uma filosofia que seja, enfim, uma filosofia latino-americana que tenha a Cosmovisão Africana como epistemologia. A proposta é que voltemos nosso olhar para o outro, até então invisível no modo de ler o mundo que nos foi forçosamente ensinado, considerando a lógica própria desse “outro” sem jamais reduzi-lo a uma outra fórmula do “um”. Trata-se de pensar um novo jeito de filosofar, a partir dos elementos que realmente nos pertencem e nos formam enquanto culturas, enquanto mundos possíveis:
“Em solo brasileiro, a Filosofia da Ancestralidade reivindica para seu fazer filosófico a tradição dinâmica dos povos africanos - especialmente a tríade: nagô, jêje e banto - como leitmotiv de filosofar. No entanto, seu contexto é latinoamericano. Tem no mito, no rito e no corpo seus componentes singulares. Tem como desafio a construção de mundos.”
Após a leitura e discussão dos dois textos citados pelos membros do Coletivo, tivemos o prazer de receber o professor Eduardo em um de nossos encontros, para poder ouvir um pouco de sua trajetória e percepções sobre a ancestralidade, tanto dentro do universo da capoeira quanto num sentido mais amplo. As leituras, somadas ao encontro com o professor que realizamos no dia 24 de junho, foram uma verdadeira experiência para o Grupo de Estudos do Coletivo.
Juntamente com o professor Daniel Pansarelli, que nos auxiliou na mediação e condução das discussões, o grupo pôde discutir ideias e ouvir diferentes interpretações sobre o que é a ancestralidade, principalmente na perspectiva das manifestações afro-brasileiras. Ao final do encontro, num sentimento contraditório, era possível perceber um maior entendimento sobre o tema para nós do Coletivo, porém, ao mesmo tempo, também o aumento do número de questionamentos e dúvidas, uma vez que se trata de um tema complexo e multifacetado em sua filosofia, que apresenta desdobramentos em inúmeros aspectos que podemos sentir no dia a dia.
O encontro nos permitiu enxergar e compreender o conceito de ancestralidade sob a perspectiva de uma linha de interlocução construída a partir do entendimento das produções do professor Eduardo Oliveira na ótica dos membros do Coletivo de Capoeira Angola, junto às contribuições inéditas dadas por ele. Segue a transcrição de um desses momentos:
“Então ela (ancestralidade) tanto é, nesse sentido, um pertencimento, quanto é também desde esse pertencimento uma abertura para relações das mais diversas e complexas que a gente pode estabelecer, com o que a gente poderia dizer aqui: a roda de fora. Então vamos lá... A ancestralidade é o portal que me permite jogar na roda de dentro e jogar na roda de fora. Ela é uma espécie de linha da Kalunga, uma linha que não separa, mas une a roda de dentro e a roda de fora.” (citação retirada do vídeo resultante do encontro, disponível no canal do YouTube do Coletivo)
Muita gratidão ao professor Eduardo por dispor de seu tempo para compartilhar seus conhecimentos conosco, e pela presença de todos que puderam estar. Que as discussões sobre ancestralidade sirvam como um direcionamento para a nossa vivência dentro da capoeira e para a nossa formação como indivíduos, para que sejamos um elo de respeito e zelo entre as próximas gerações e o legado a nós deixado pelos nossos antepassados.
*Esse post foi escrito, de maneira coletiva, por Lucas Silva, Luiza Bottan, Renan Lopes e Sara Lorena, membros do Coletivo de Capoeira Angola da UFABC e bolsistas do Projeto de Extensão "Capoeira Angola e Academia: Encruzilhada de Saberes."
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