Mestra Janja, março de 2020 (Foto: Nzinga Salvador)
“Conhecimento de si exige reconhecer a ancestralidade; conhecimento do outro exige recorrer à identidade”
Em nosso quarto encontro discutimos o artigo “Capoeira Angola, corpo e ancestralidade - por uma educação libertadora”, de Rosângela Araújo (nossa querida Mestra Janja) e Sara Abreu. Eu, particularmente, estava muito ansiosa para a leitura e discussão desse tema: a pedagogia da capoeira.
A Capoeira é, a meu ver, uma pedagogia completa.
Ela educa pois educação, na verdade, é uma palavra que sequer existia nas línguas tradicionais africanas. Nessas línguas, o “educar” significa “tornar-se pessoa”, “aprender a própria vida” (p. 99) e ocupa todos os setores da comunidade (quem nunca ouviu o famoso ditado Africano que diz “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança”?).
Ao contemplar os sete valores civilizatórios afro-brasileiros (ancestralidade, força vital, oralidade, musicalidade, corporeidade, circularidade, cooperatividade), a Capoeira contempla todos os aspectos humanos. Seu aprendizado é completo em todas as esferas: o interno do indivíduo, suas relações na sua comunidade e seu posicionamento no mundo (axé, mandinga, jogo). Passa pelo compromisso com o próprio corpo e o corpo do outro (Mestre Pastinha vê o “cuidado com o corpo do outro como um compromisso ético que deveria ser assumido pelos capoeiristas - a capoeira nos ensina o compromisso do corpo como lugar sagrado). No topo de tudo isso, as situações desafiadoras dentro e fora da roda de capoeira nos ensinam também a usar uma atenção multifocal - para tudo que está à nossa volta.
Em resumo, nas palavras de Luiz Vitor Castro Jr: “A Capoeira acaba por ser uma escola da vida, onde se aprende a jogar capoeira”.
“A Capoeira Angola é um modo de vida que se fundamenta na Ancestralidade”
A discussão sobre ancestralidade perpassa várias temáticas e é assunto recorrente em nossas reuniões: não só nesse encontro mas em vários outros, discutimos diversas definições do que seria, afinal, essa ancestralidade. A partir da leitura do artigo, interpreto que para entender a ancestralidade é preciso entender a noção de tempo circular: “ela não se trata de um passado congelado no tempo, mas é constantemente (re)construída e (re)significada nas práticas cotidianas dos grupos ou comunidades” (p 108).
Essa ideia de Ancestralidade é, aliada aos outros valores civilizatórios afro-brasileiros, indispensável para o exercício da Capoeira, que “(...) como práxis pedagógica articulada à ancestralidade, está assentada na prática da vivência grupal e da oralidade” (p. 102). Ela não é, no entanto, “um conjunto rígido de sanções morais”, nas palavras do professor Eduardo Oliveira, “mas um modo de vida”.
“A oralidade está intimamente vinculada à memória cultural, que se atualiza pelas palavras dos mais antigos, quando contam histórias, bem como na realização dos rituais.”
A oralidade é outro elemento essencial nos valores civilizatórios afro-brasileiros,que também se faz presente e essencial na Capoeira. Mestre Cobra Mansa sempre nos lembra o quanto ela tem a ver com o hálito de quem fala: a condição para a oralidade é estar presente.
Vivemos, porém, numa sociedade cada vez mais pautada no aprendizado através do que está registrado, fruto da cultura acadêmica ocidental. Além de que, para que a oralidade aconteça, é preciso tempo. Tempo de ouvir… De falar… De refletir… Sem pressa… E essa prática é cada vez mais podada em nossa sociedade sem tempo. Como podemos, hoje, fazer jus à oralidade que acreditamos tão necessária na vida e na Capoeira?
No cenário atual, especialmente: como manter a oralidade viva perante o isolamento social? Como ouvir as mestras e mestres antigos, se nossa interação está resumida a reuniões on-line e sabemos que muitos e muitas desses mestres e mestras não tem acesso ou afinidade com essas tecnologias? A reflexão que surgiu em nosso encontro a esse respeito foi: nossas conversas são oralidade?
“O crescimento das pessoas tem sentido quando representa fortalecimento para a comunidade a que pertencem”
O aprendizado da Capoeira, representado pela roda, tem caráter profundamente comunitário.
Durante o encontro, discutimos o papel da identificação no processo de pertencimento a uma comunidade. De quantas comunidades participamos e de quantas realmente somos sujeitos e entendemos que somos um grande corpo? Às vezes estamos numa comunidade mas não somos parte dela. Somente o pertencimento a uma comunidade de Capoeira trará a experiência plena do que é a Capoeira: vai, obviamente, muito além dos treinos físicos, dos movimentos corporais. O real aprendizado dentro da Capoeira passa pela inserção e envolvimento no universo da capoeiragem, o que se dá, principalmente, nos grupos de capoeira.
A relação com o corpo como algo sagrado e o sentido de prática comunitária andam colados com a Capoeira. É nesse corpo, o nosso corpo, que presenciamos a dor e o prazer, e é esse corpo em conjunto com outros que vai formar um corpo maior. No exercício da pequena e da grande roda é que experienciamos nossa relação com nosso corpo e a relação do nosso corpo com o outro e com o mundo; passamos pelos movimentos cultural, político e social.
Como escrevem Mestra Janja e Sara Abreu: “o compromisso que aprendemos a ter com nosso camarada de grupo (...) precisamos aprender a ter conosco em primeiro lugar” (p. 100). Só através do respeito ao nosso corpo é que conseguiremos desenvolver respeito pelo corpo do outro e por todo o corpo de nossa comunidade. Nessa relação interpessoal é que se dá também a transmissão do Axé, a força vital, parte fundamental do ritual da Capoeira e pedra fundante da cosmovisão africana.
Por isso é que a Capoeira me encanta como ferramenta na construção de uma educação antirracista e libertadora, posto que se mostra uma pedagogia completa: ao nos ensinar o cuidado com o próprio corpo, com o corpo do outro; a atenção com o que se passa à nossa volta, na pequena e na grande roda; ao nos aproximar de nossa ancestralidade e nos ensinar a ouvir os mais velhos e sua sabedoria, para além do que está registrado em livros academicamente validados; ao nos ensinar a ocupar nosso lugar mas também entender a nobreza do chão, que a rasteira nos mostra.
É uma pedagogia completa ao aliar elementos simbólicos - como a roda, o Mestre, o ritual, as ladainhas e corridos, a mandinga, as chamadas, entre muitos outros - a valores ancestrais e fundamentais - como a oralidade, a ancestralidade, a cooperatividade, a musicalidade, a circularidade, a força vital, a corporeidade e a memória.
“Somos os capoeiristas do nosso tempo”, concluímos em nosso encontro. E a questão que fica é: como faremos valer o que foi dito e escrito pelos que vieram antes de nós, para que não sejam só palavras bonitas e desprovidas de real sentido? Como construiremos essa comunidade dentro da nossa sociedade linear, academicista e sem tempo?
Parabéns a Tabata e a todos/as que se dedicam mantendo viva a nossa ancestralidade.